#Refletindo# Lembrança da Infância

16 abril 2011

     Numa tarde dessas, eu e minha mãe, estávamos jogando conversa fora, num desses dias em que a gente finge que não tem nada de melhor ou mais importante para fazer, a não ser ficar conversando sobre coisas banais. Ela me contou que minha tia havia comentado que a “buchada de bode” de Fortaleza, não era tão boa quanto à do Piauí. Eu ouvi atentamente a história que minha mãe contava e assim que ela terminou de falar, perguntei para ela qual era a diferença entre a buchada de bode de Fortaleza e a do Piauí? Ela logo respondeu:
    “- Você não lembra?”
    Eu balancei a cabeça negativamente. Então ela emendou:
   “- Lá no Piauí, a buchada de bode é recheada com “tripinha” cortada bem fininha.”
   “- Tripinha? Que horror mãe!” Resmunguei depois que ela explicou.
    Veio-me um sentimento de repulsa na mesma hora. Um nojo natural, desses em que você chega a imaginar tudo nos mínimos detalhes, deixando a gente com mais nojo ainda daquilo que se está falando ou lembrando. Reações típicas do ser humano. Mamãe não gostou nada da minha reação quando viu minha careta. Balançou a cabeça num gesto decepcionado e acabou dizendo:
    “- Nem sei por que você está assim com essa cara feia, se quando era pequena e nós morávamos no Piauí, você comia buchada que até repetia. Pois é, como as coisas mudam. Hoje faz careta por uma coisa que um dia achava tão boa...”, finalizou ela.
    Minha mãe tinha razão. Como eu poderia rejeitar algo que um dia eu comia com tanto gosto? Nesse momento, senti uma vergonha tão grande de mim mesma e quase que instantaneamente, me veio a lembrança de um episódio muito triste da minha infância. Foi tão rápido, mas tão rico nos detalhes, que era como se eu estivesse assistindo a um pequeno filme, em que a personagem principal era eu.
    Lembro que tinha oito anos de idade, meu irmão tinha cinco e minha irmã quatro, era um dia comum para todos, com exceção da minha família que passava por um período de muita dificuldade, talvez o mais difícil e cruel de todos que já passamos, a falta de comida. Meu pai que era carpinteiro, não estava trabalhando, pois não havia trabalho na cidade. Eram tempos de ‘vacas magras’ como dizia ele.
    Eu e meus irmãos estávamos arrumados para irmos para a escola. Naquela época, estudávamos à tarde. Tínhamos que sair cedo, a caminhada era longa e o sol não perdoava. O ponteiro do relógio marcava meio dia e aquela altura nenhum de nós havia comido nada. As panelas de casa estavam todas viradas para baixo ou guardadas nos armários. A única refeição do dia seria a merenda da escola, do qual não parávamos de pensar. Os olhos de mamãe marejavam quando olhavam para nós. Barrigas vazias, roncando, aguardando um prato de comida que ela e nem meu pai, por conta das circunstâncias da vida, não podiam nos oferecer.
    Eu não reclamava tanto, como era a mais velha, entendia um pouco a nossa situação, mas chorava escondido rezando pra Deus, sem conseguir entender o porquê de uns terem tão pouco, enquanto outros tinham tudo em abundância?
    Três dias se passaram e aquele sofrimento permanecia. Nossa ansiedade aumentava quando se aproximava à hora de irmos para a escola. Lugar onde faríamos nossa primeira e muitas vezes a única refeição daqueles dias tristes e longos.
    No quarto dia, meus irmãos choravam cada vez que viam alguém passar na porta com alguma comida. Meu corpo já estava tão fraco, os olhos fundos, minha mãe e meu pai, estavam mais desesperados. A pequena panelinha de comida que ele havia trazido na noite anterior da casa da nossa avó, não tinha sido suficiente para saciar o que todos aqueles dias foram deixando mais e mais intenso.
    Com a fome aumentando a cada dia, uma pequena panelinha de comida, dividida entre cinco pessoas, não dava conta de sanar a fome de todos, ela apenas fazia aumentar o que já estava num estado caótico.
    O sol quente na cabeça ardia mais que de costume. A caminho da escola, eu já imaginava se naquele dia iria comer arroz e feijão, pois assim poderia agüentar mais até o outro dia. Os meus passos eram lentos, a fraqueza acumulada não permitia que eu andasse mais rápido. De repente, uma voz longínqua chamava meu nome. Era a minha mãe. Ela pedia para que eu voltasse para casa. Os passos voltaram-se em direção à ela novamente e quanto mais perto de casa eu me aproximava, mais eu percebia um pequeno sorriso no rosto de mamãe.
    A ansiedade era tanta que venci a fraqueza e corri. Para minha surpresa, quando cheguei, avistei um prato de comida em cima da mesa me esperando. Minha madrinha havia trazido um pouquinho depois que eu tinha saído para a escola. Mamãe que já estava desesperada com aquela situação, correu até a porta e vendo-me de longe, disparou a gritar meu nome para que eu pudesse voltar e comer antes de ir para o colégio.
    Lembro tão nitidamente daquela cena... Lembro até da comida que estava no prato de esmalte branco da minha madrinha. Um momento realmente inesquecível para mim. Não só pela situação em que eu e minha família nos encontrávamos, mas pela sensação indescritível de ter que comer, sem saber quando poderia ou teria oportunidade de comer outra vez.
    Não guardo muitas lembranças da minha infância, até porque eu tenho uma memória muito fragmentada, muitas vezes não consigo reter lembranças nítidas e inteiras. No entanto, esta é a única que vaga na minha memória como se fosse uma foto antiga, tirada em um momento ruim, daquelas em que geralmente rasgamos ao vê-la, mas que uma vez visualizada, a imagem fixa na nossa memória e sempre que alguém ou alguma coisa nos faz relembrá-la, a imagem se reconstrói de maneira fiel quase que imediatamente.
    Para algumas pessoas, as lembranças, muitas vezes são esquecidas, principalmente aquelas lembranças que trazem algo de ruim que já vivemos, mas para mim, elas são vinculadas a valores, lições que um dia aprendemos ou presenciamos. Valores que nunca se perdem com o tempo, e que de uma maneira ou de outra, acabam sendo relembrados, num longo e definitivo processo mental, fazendo com que eu nunca me esqueça de quem eu fui, quem sou e quem poderei ser ou continuar sendo. Não há como negar as raízes por mais que as circunstâncias possam me afastar delas.

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